O ACONSELHAMENTO E A SOLIDARIEDADE INTELECTUAL
Agostinho Dalla Valle

O Aconselhamento e a Solidariedade Intelectual

Agostinho Dalla Valle

  • Mestre em Gestão Empresarial
  • Consultor Organizacional
  • Conselheiro de Administração
  • Mentor Executivo
  • Autor dos livros: “Turnaround-Virando o Jogo” e “Benchmarking Reverso”

 

Émile Durkheim, um dos fundadores da sociologia moderna, preocupava-se com as mudanças que observava no contexto social em que vivia, no século XIX. Durkheim estava preocupado com a dimensão social que envolvia a divisão social do trabalho e as relações de solidariedade social. Pela ótica de Durkheim, os sujeitos estariam inseridos em uma lógica de solidariedade orgânica, uma vez que a sociedade funcionaria como um organismo vivo, em que cada órgão do corpo estaria especializado em uma atividade específica – “não poderia o cérebro realizar a atividade do coração, mas eles seriam interdependentes, uma vez que um coração não bate sem um cérebro para comandá-lo e nem o cérebro sobrevive sem um coração para alimentá-lo”.

Nesse contexto sociológico, faço uma reflexão sobre o propósito – mais do que a missão – dos conselheiros e abordo simultaneamente e às vezes de forma mesclada, o papel do conselheiro profissional, que é uma atividade laboral, de quem se espera ajuda às pessoas que estão por trás dos sócios, diretores, gerentes. A ênfase deste artigo recai sobre o espírito de solidariedade de quem aconselha.

Nos meios sociais em que circulamos, nos defrontamos constantemente com muitas pessoas em busca de uma definição, de um rumo para a vida. No mercado de trabalho, encontramos muitos profissionais vagando de uma para outra empresa ou posição funcional, tal como zumbis, sem convicção do que querem para sua carreira. Em qualquer caso, tudo tem a ver com as incertezas da época em que vivemos. Sim, vivemos num mundo BANI – frágil, ansioso, não-linear e incompreensível, que é uma versão piorada do mundo VUCA – volátil, incerto, complexo e ansioso.

Presume-se que as escolas e as universidades proporcionam o ensino – as famílias a educação – mas percebe-se que os indivíduos buscam algo mais do que formação e educação, procuram orientação para o trabalho e para a vida. Mesmo com títulos de bacharéis, mestres ou doutores, em algum momento da carreira ou da vida, as pessoas precisam de aconselhamento.

O processo de aconselhamento começa quando somos picados pela “mosca” da empatia que nos leva a colocar-nos no lugar dos outros e tentar compreender suas preocupações, seus medos e seus anseios. A empatia é uma das competências voláteis mais requisitadas neste novo século, não apenas para conselheiros. Mas cuidado – ela tem um lado bom, da solidariedade e da gentileza – e tem outro lado, quando a empatia é demasiada, encobrimos os defeitos da outra pessoa, sem ajudar a resolvê-los. É o que se chama de complacência ou paternalismo. O bom aconselhador é aquele que ensina a pescar mais do que a dar o peixe. Nesse processo, o ato de ajudar precisa de limites – temos que saber até onde ir, pois o “tiro pode sair pela culatra” – ao invés de ajudar, apenas protegemos e, assim, atrapalhamos. A verdadeira ajuda só acontece quando o aconselhado se ajuda.

Alguns aconselhados depositam todos os seus problemas no conselheiro para que ele os resolva, “terceirizando” a busca de soluções. Depositam excesso de confiança naquele que às vezes chamam de “guru”, “mestre” etc. e, assim, o processo de aprendizado fica prejudicado pela falta de engajamento. É quase uma delegação inversa, de baixo para cima. De outro lado, há conselheiros que sofrem e até adoecem mentalmente querendo carregar o fardo emocional dos outros. A empatia exagerada nos leva a querer carregar um peso que não é nosso. Temos que saber lidar com isso e definir os limites e as responsabilidades de cada parte.

Certa vez, o presidente de uma empresa em que fui diretor, ao me devolver um feedback, afirmou que eu poderia melhorar minhas competências se eu tivesse a capacidade de “ser mais duro com minha equipe”, que eu deveria “bater na mesa” quando necessário. Contra-argumentei, então, que eu havia me preparado para liderar a equipe – as pessoas por detrás dos profissionais – valendo-me da empatia para compreender o que os fazia atuar com maior ou menor performance e, assim, obter melhores resultados. Agora, tantos anos depois, na condição de conselheiro de administração e mentor executivo, continuo acreditando e valorizando a empatia como forma de compreensão, aconselhamento e ajuda. A medida certa da empatia, talvez esteja na essência do que Ernesto Che Guevara quis dizer com a famosa frase “Hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás”.

A empatia nos conduz espontaneamente à solidariedade. Acredito fortemente que, enquanto conselheiros profissionais, podemos ser mais solidários com os executivos e com os acionistas, procurando entendê-los em suas preocupações e dificuldades, sem confundir os respectivos papéis e sem perder a independência.

Pode parecer fácil, mas na prática aconselhar é como o exercício do sacerdócio – exige muita resiliência do conselheiro e do aconselhador – pois nem todos os profissionais e nem todas as pessoas gostam de ser aconselhadas. Nós só podemos ajudar quem quer ser ajudado. Eu costumo enfatizar o que sabiamente dizia Winston Churchill: “a maior parte das pessoas que conheço quer aprender, mas muito poucas querem ser ensinadas”.

De outro lado, o conselheiro também deve se esforçar para desmistificar seu papel. Muitas vezes, ele é visto como poderoso, inacessível, distante da realidade – um super profissional que se situa acima das ineficiências dos vis mortais. “Quem ele pensa que é para dar conselhos?” ou “se conselho fosse bom não seria dado, seria vendido” – quem ainda não ouviu frases desse tipo? Cabe a nós, conselheiros e aconselhadores, mudarmos essa imagem, revendo os ritos e nos aproximando mais dos gestores e das pessoas que necessitam conselhos. E, por falar em imagem, as percepções é que importam. Sem entrar no mérito, há uma imagem por vezes desgastada dos coachs, mentores e conselheiros. Isso me faz lembrar a crítica a uma peça de teatro escrita há muito tempo por Pirandello “cosi è, se vi pare” – ou “assim é, se lhes parece”, que trata do confronto entre as aparências e a realidade, entre o verdadeiro e o falso. O conselheiro que não aconselha é aquele que age como figura decorativa, apenas como símbolo de status, sem atuação efetiva.

Nos últimos anos emergiu o coaching e o mentoring, gerando alguns ruídos em relação ao aconselhamento-raiz que é chamado de counselling. Coaching é a arte de fazer perguntas provocando o coachee a encontrar as respostas, enquanto o conselheiro utiliza a arte de buscar respostas às perguntas do aconselhado. No mentoring, um profissional sênior se responsabiliza em orientar um profissional mais novo, compartilhando experiências. O mentoring é um processo que mais se aproxima do aconselhamento, onde o mentor dá dicas e prepara a pessoa – profissional ou não – para corrigir desvios, aproveitar as oportunidades e obter sucesso.

O coach, o mentor, o conselheiro e o aconselhador, devem atuar com um lastro de confiança mútua e confidencialidade absoluta. As vontades dos dois lados devem ser respeitadas, e a situação requer do aconselhado, capacidade de indignação e disposição para melhorar.

O conselheiro e o aconselhador devem reunir competências técnicas, mas também e, principalmente, soft skills que lhe permita entender a essência das decisões dos profissionais enquanto seres humanos. Aqueles que possuem a capacidade de pensar, sensibilizar, perguntar, solidarizar, emocionar, perceber, compreender, sentir, colaborar, certamente terão melhores performances enquanto conselheiros. Ou seja, devemos atuar também no campo emocional e não apenas no racional, ou seremos apenas juízes e algozes. Assim, um conselheiro deve dispor do máximo de informações sobre os aconselhados e compreender suas necessidades para depois aconselhar e tentar auxiliar.

“Para entender os sentimentos dos outros, precisamos entender nossos próprios sentimentos e primeiro compreender para depois ser compreendido” – Stephen R. Covey.

Perguntam-nos com frequência o que precisa para ser conselheiro. A princípio, quem está apto a dar conselhos profissionais e pessoais é quem tem experiência, vivência e conteúdo. É quem tem maturidade e equilíbrio mental para passar segurança ao analisar qualquer situação. O Conselheiro deve interpretar o contexto, ajudar o aconselhado a se localizar e se posicionar em relação ao seu mundo e ao mundo em geral, ao mercado, à empresa, à família. Tenta encontrar soluções para o problema do aconselhado e apontar caminhos a serem seguidos. Atua com conselhos concretos para problemas ou situações pontuais. Orienta o aconselhado em suas ações para sair de uma situação de crise profissional ou pessoal, apontando soluções ou referências que possam minimizar as chances de erro em suas decisões. Cabe ressaltar que em aconselhamento não existe apenas o certo e o errado, existem referências do que deu certo e do que deu errado. Diz o que o aconselhado precisa ouvir e não o que ele gostaria de ouvir. Ao final do processo, espera e confere se o aconselhado encontrou um novo “ponto de equilíbrio” em sua profissão e em sua vida.

Algumas pessoas são vocacionadas a orientar e aconselhar outras – os irmãos, mesmo os mais velhos – e até os pais – ou amigos. Dar conselhos é um processo que acontece quase que naturalmente, como um chamado, mas também pode ser desenvolvido, assim como a liderança.

A vocação profissional pode nos conduzir a posições de executivos, consultores organizacionais e conselheiros de administração que, em sua essência, dão conselhos aos sócios e gestores de empresas. Ser conselheiro de administração nos ajuda a entender melhor as empresas, os profissionais e principalmente as pessoas que nelas atuam.

Em nossa trajetória profissional, tivemos a oportunidade de vivenciar situações empresariais, profissionais e familiares as mais variadas possíveis – do sucesso ao fracasso e vice-versa. Por isso, podemos testemunhar sobre a importância social do aconselhamento. Gratidão a algumas pessoas, sábias e solidárias, que nos orientaram e aconselharam em momentos críticos de nossa caminhada profissional e pessoal, indicando rumos que não havíamos percebido. Agora, nesta fase da maturidade, podemos retribuir a outras pessoas.

Compartilhar conhecimentos é outra forma de solidariedade intelectual. Vamos cada qual fazer a sua parte. Com o intuito de dividir experiências e aconselhar profissionais mais jovens, em 2010 escrevi um livro, sem pretensões econômicas, sobre como reestruturar uma empresa em crise (Turnaround – Como Virar o Jogo – da Crise para a Recuperação). Agora em 2022, com os mesmos objetivos, publiquei outro livro intitulado (Benchmarking Reverso – Análise das piores práticas de gestão empresarial).

Aconselhar é comungar conhecimentos e experiências de forma solidária. É ajudar o maior número possível de profissionais e pessoas a compreender da melhor forma como a gestão e os comportamentos afetam os negócios e impactam suas vidas, para que todos possam tomar melhores decisões e obter melhor performance e qualidade de vida.

Por óbvio, num país como o nosso, existem outras prioridades materiais. Temos que nos solidarizar com os mais necessitados doando alimentos, roupas etc., mas também precisamos pensar que muitas pessoas necessitam de “doações” emocionais, aconselhativas. Precisamos sim de mais pão, moradia e escola antes de conselhos. Mas, pensando no longo prazo, temos o dever de prepararmos melhor os jovens, os profissionais, as pessoas, na construção de uma sociedade mais equilibrada e mais justa.

Apenas como paralelo às sociedades e culturas mais evoluídas, há uma filosofia japonesa para viver mais e melhor, chamada IKIGAI, que beira a espiritualidade e o propósito de vida. Okinawa é um dos lugares do mundo de maior longevidade e com melhor qualidade de vida. Lá, não há palavra para caracterizar aposentadoria, eles continuam ativos até o fim da vida. Eles praticam o ikigai, que é a razão por que levantam todas as manhãs e, mesmo aposentados, procuram ser úteis à comunidade, ajudando, ensinando, aconselhando os mais jovens. Ikigai é a intersecção de quatro variáveis que mexem com qualquer pessoa: paixão pelo que faz, missão ou razão de ser e existir, vocação que nasce com a gente e profissão que escolhemos.

Bom ver o mundo corporativo dedicando sempre mais atenção aos aspectos sociais. A valorização do ESG (Environment – Social – Governance), empoderando o “S” de “Social”, nos remete ao aconselhamento e à solidariedade intelectual como parte de uma visão ampliada de desenvolvimento social. Nos USA, por exemplo, existem instituições como a dos Executivos Seniores que prestam consultoria gratuita a empresas de pequeno porte. No Brasil temos também um bom exemplo, o movimento das “Empresas de Comunhão” – faz parte de um movimento maior dos Focolares – cuja filosofia compreende a cultura da fraternidade na partilha dos lucros, das experiências, da aprendizagem e das relações socioeconômicas.

E, para finalizar este artigo e justificar o seu título, deixo um conselho: exponha-se constantemente ao aprendizado, com humildade, com sentimento de auto indulgência e disponha-se a aprender com os mais experientes. Aceite conselhos – não necessariamente dos mais velhos, mas sim dos mais sábios, mais “vividos”. De outro lado, prepare-se, solidarize-se, compartilhe, aconselhe – não seja um acumulador de conhecimentos guardando apenas para si o que a vida lhe proporcionou aprender – seja mais solidário, contribuindo, assim, para construir um mundo melhor.

Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um outro nível”.

 

 

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